sábado, 6 de novembro de 2010

ATRAÇÃO FATAL - Parte I

Atração Fatal

Uma das questões mais polêmicas da Língua Portuguesa, no Brasil, é a colocação pronominal. Polêmica porque, embora haja regras, nem sempre dão conta dos casos encontrados no dia a dia. Resta, então, recorrer aos especialistas.

No exemplo seguinte, há um curioso caso, que ilustra por que é polêmica a colocação:

Em Copenhague, membros do grupo Socialistas Libertários marcharam com a esquerda autônoma. A manifestação juntou aproximadamente 5 mil pessoas. O tema principal da passeata foi contra a repressão estatal contra os movimentos sociais, com slogans como "Quando a injustiça torna-se a lei, a resistência torna-se um dever" e "Somos todos anti-fascistas". (grifos nossos)

(http://pt.indymedia.org/conteudo/newswire/1307)

Antes de tratar da colocação, é interessante relembrar os três casos possíveis em Português: próclise, mesóclise e ênclise.

Na próclise, o pronome é colocado antes do verbo a que se refere: Ele se feriu. Veja-se que próclise é refere-se à posição do pronome e não constitui, de fato, obrigação. A mesma sentença poderia ser escrita assim: Ele feriu-se.

Na ênclise, o pronome é colocado depois do verbo — Ele feriu-se. — e se liga a esse mesmo verbo com hífen. Outra característica importante da ênclise é a alteração morfológica. Em Ele pretende comprar a camisa do Corinthians, se o objeto direto (a camisa do Corinthians) fosse substituído por um pronome (a), haveria comprá-la. O “r” se torna “l”, numa adequação fonética, e o verbo “comprar”, oxítona terminada em “r”, passa a ser terminado em “a”, o que obriga a acentuá-lo: “comprá-la”. Ênclise é a colocação mais elegante, e preferencial, segundo alguns autores — “Quando não há nada que eufonicamente atraia o oblíquo, deve-se dar preferência à posposição”(Almeida, 2009, p. 492), ou seja, à ênclise.

Na mesóclise, o pronome é colocado “no meio do verbo”, entre hífens — as aspas anteriores se justificam pelo fato de, historicamente, os futuros (do Pretérito e do Presente do Indicativo) serem formados por dois verbos (v.g., amarei = amar + hei, do v. haver), assim o pronome vai entre eles: amará + se = amar-se-á.

Em rigor, há três normas que regem a colocação pronominal: eufonia, atração e distância.

Eufonia é “a qualidade da enunciação agradável ao ouvido”(Camara Jr., 2007, s.u.: eufonia). É mais: “a harmonia, a agrabilidade do som, ou, ainda, a facilidade, a suavidade na pronunciação”(Almeida, 2009, p. 491). É, segundo Almeida, esse o motivo de, em “... porquanto atirá-la-ia...”, o pronome estar mais bem colocado do que em “... porquanto a atiraria...”, mesmo havendo atração na palavra porquanto (Almeida, 2009, p. 495).

Atração é o fato de que, após determinadas palavras, a colocação se mantém em próclise obrigatória ou não. Há, além disso, casos em que a colocação é repelida para depois o verbo ou atraída para depois do verbo.

Distância é o fator que pode eliminar o valor atrativo de uma palavra.

Se entre a palavra de valor atrativo (advérbio, indefinido, relativo, conjunção subordinativa, partícula negativa) e o verbo houver uma locução, um parêntese, uma oração interferente, se, enfim, houver a distância, perderá essa palavra o valor atrativo. (Almeida, 2009, p. 497).

Sobre a atração, cabe, por fim, tratar rapidamente acerca dos casos em que o pronome é repelido. Diante de por e a, os pronomes o, a, os, as são repelidos: “Ele estava por alcançá-lo.”; “Ela estava prestes a deixá-lo”. Também as pausas ( o início de uma sentença, uma vírgula, um ponto final etc.) repelem o pronome para frente do verbo a que ele se liga.

Em resumo: no excerto “Quando a injustiça torna-se a lei, a resistência torna-se um dever”, há uma oração subordinada, iniciada por “quando”, o que, por definição, atrairia o pronome. Assim, a construção correta (até agora) seria “Quando o mandato se refere a...”.

Confirma essa idéia a seguinte explicação:

Observação:

Também aqui a distância que por acaso haja entre a conjunção que introduz a oração subordinada e o pronome continua a exigir a próclise:

Bibiana ficava constrangida quando alguma amiga que a visitava ou cruzava com ela na rua lhe pedia notícias de Rodrigo. ( Érico Veríssimo, apud Bearzoti Filho, 1990, p.48).

Essa mesma explicação justifica, segundo Leme (2008, p. 26 et seqq.), as seguintes construções: “Todas as estatais, coordenadas pela Secom, se juntaram...”, “É preciso que alguém, ou algo, os provoque” — a lista que o autor oferece é longa. Infelizmente, essa explicação derruba a de que as pausas repelem o pronome.

Em seguida, o autor traz mais uma lista (idem, ibidem, pp. 27-8) na qual se encontram exemplos contrários, nos quais a intercalação, ou uma pausa, repelem o pronome. E conclui : “se depois de uma partícula atrativa houver intercalação, pode-se usar, sem medo de erro, também a ênclise ”(idem, ibidem, pp. 28).

Em caminho contrário, Almeida apresenta casos em que, entendida uma pausa não assinalada por pontuação, a atração dos advérbios pode ser desprezada. “Porque hoje pregam-se as palavras...”, “Antigamente pregavam-se as palavras” (Almeida, 2009, p. 497).

Ou seja, a oração “Quando o mandato refere-se a negócios em geral...” pode, sim, ser considerada correta. Principalmente do ponto de vista eufônico, que é um tanto subjetivo e justifica uma série de exemplos que as gramáticas não conseguem explicar em suas definições.

Alguns exemplos colhidos da internet – mesmo sabendo não serem casos exemplares de autores consagrados ... – para ilustrar:

· Quando o pecado torna-se "sagrado"

· Quando medicar um gato torna-se esporte radical...

· MÍDIA E EDUCAÇÃO: Quando a Produção Docente Torna-se um Fazer Midiático

· Quando liberdade de imprensa torna-se liberdade à coerção

· Quando o ceticismo torna-se uma religião

· Quando a pausa torna-se ineficaz no discurso público

· Paraisópolis: quando a pobreza torna-se crime

O assunto ainda não foi encerrado.

Referências

ALMEIDA, Napoleão Mendes de.Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 46 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BEARZOTI FILHO, Paulo. Sintaxe de Colocação: teoria e prática. 5 ed. São Paulo: Atual, 1990.

CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de Lingüística e Gramática. Petrópolis: Vozes, 2007.

LIMA, Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 48 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

LEME, Odilon Soares. Colocação Pronominal. Barueri: Manole, 2008.

Um comentário:

  1. Olá! Que bom que encontrei seu artigo aqui, há tempos eu buscava saber o que é considerado 'distância' quando estamos tratando de colocação pronominal. Na gramática do Celso Cunha não há nada a respeito da distância, vi que você cita o Napoleão, darei uma olhada nessa gramática em casa.
    Obrigada!

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